'Obscuro', 'apressado' e 'inconstitucional': especialistas analisam decreto sobre privatização de postos de saúde do SUS

 O governo federal editou um decreto que libera estudos sobre parcerias com o setor privado para a privatização de Unidades Básicas de Saúde (UBS), do Sistema Único de Saúde (SUS). O foco do decreto é a busca de alternativas para "a construção, a modernização e a operação" das UBS.
Especialistas ouvidos pelo G1 demonstraram preocupação com o texto publicado na terça-feira (27). "Obscuro", "apressado" e "inconstitucional" foram alguns dos adjetivos usados para qualificar o decreto.
Em notas do Ministério da Economia e da Presidência, o governo federal ressaltou que "a medida não representa qualquer decisão prévia". O Ministério da Saúde não se posicionou sobre o tema.
O que diz o decreto?

O decreto nº 10.530/2020 dispõe sobre “a qualificação da política de fomento ao setor de atenção primária à saúde no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República, para fins de elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa
O texto prevê, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), a “elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada” para construir, modernizar e operar os postos de saúde do país (conhecidos dentro do SUS como Unidades Básicas de Saúde, as UBS).




O documento é assinado pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Não há assinatura de nenhum integrante do Ministério da Saúde.

Em nota, a Secretaria Geral da Presidência da República disse que os estudos devem indicar "a viabilidade (ou inviabilidade) de aplicação concreta" das alternativas sugeridas pelos estudos.

O que ele significa na prática?
Na opinião do pesquisador em saúde e direito Daniel Dourado, da Universidade de São Paulo (USP), o texto do governo é obscuro.
“É um decreto muito estranho, muito obscuro, a redação é muito ruim. É muito difícil, porque não dá para entender o que ele está falando”, afirma Dourado, ao mesmo tempo em que lembra que o programa de PPI do governo "é um programa que trata, basicamente, de concessões e privatizações”.

Para Dourado, o que preocupa é o seguinte:

"A questão é que já existem modelos de parcerias público-privadas na saúde (veja detalhes mais abaixo), não é disso que se trata. O que a gente pressupõe é que eles estão tentando buscar um outro modelo. O que eu acho preocupante desse decreto é que ele não vai tratar de algo que já existe. Se fosse, não precisaria fazer um decreto dizendo que vão estudar novos modelos de negócios".

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  • A especialista em saúde pública Lígia Bahia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avaliou o decreto como "apressado" e considerou "estranho" o fato de a área da saúde não ter sido ouvida
  • "Essa inversão, essa chegada do Ministério da Economia na saúde é uma coisa extremamente preocupante, é um desastre. O ministro Paulo Guedes não entende nada de saúde”, afirmou Bahia.
  • O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, entendeu o decreto como um caminho para a retirada de direitos da população. Pigatto disse que o decreto será avaliado pela Câmara Técnica da Atenção Básica (CTAB) do CNS, que deve emitir um parecer formal sobre o texto e tomar as devidas providências legais.

    "Precisamos fortalecer o SUS contra qualquer tipo de privatização e retirada de direitos" - Fernando Pigatto, presidente do CNS

     

     

    Setor privado pode ter parcerias com o SUS?

    Sim, a iniciativa privada pode ter parcerias com o SUS. São três os tipos possíveis, explica a pesquisadora Ana Maria Malik, coordenadora do FGV Saúde, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, especialista em parcerias público-privadas (PPPs) na saúde:

    1. As feitas pelo Proadi (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), em que 5 hospitais de excelência brasileiros prestam serviços ao SUS – que vão desde projetos de educação até a assistência em saúde de alta complexidade, como é o caso dos transplantes (embora, segundo Malik, esses venham sendo feitos de forma menos frequente). Em troca, os hospitais recebem isenção de impostos.
    2. As feitas em PPPs, como é o caso do Hospital do Subúrbio, em Salvador. No caso baiano, especificamente, a empresa envolvida é responsável por equipar, mobiliar e operar a unidade hospitalar, incluindo os serviços médicos prestados. Os custos são pagos pelo estado da Bahia, e o atendimento às pessoas continua gratuito.
    3. As feitas com as Organizações Sociais de Saúde (OSS), instituições filantrópicas do terceiro setor que não têm fins lucrativos e são responsáveis pelo gerenciamento de serviços do SUS em todo o país, atuando em parceria com os governos. A maioria dos postos de saúde de São Paulo, por exemplo, é administrada por uma OSS.

    No caso das OSS, a legislação que permite as parcerias é de 1998. O tema foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, que liberou que entidades privadas conhecidas como organizações sociais possam prestar serviços públicos nas áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, meio ambiente, cultura e saúde.

  • O SUS pode ser privatizado?

    De acordo com Daniel Dourado, da USP, só se for feita uma nova Constituição. Isso porque o direito à saúde está garantido na Constituição de 1988, e, por se tratar de uma cláusula pétrea, não pode ser alterada por meio de emenda constitucional.

    Dourado explica que, apesar de estar previsto na Constituição que é possível empresas privadas obterem concessões de serviços públicos e lucrarem com isso – como é o caso da concessão de estradas, por exemplo –, isso não pode ser feito na saúde.

"Quando eles estão falando de modelo de negócio e de privatização e concessão, uma coisa tem que ficar muito clara: ter a lógica da iniciativa privada dentro do SUS não pode, é inconstitucional" - Daniel Dourado, pesquisador da USP em saúde e direito

"A saúde é um direito social. O SUS está aí dentro – o direito à saúde está vinculado diretamente ao SUS pela própria Constituição. Se você mexer no SUS para inserir uma lógica privada, isso tem grande chance de escorregar para algo inconstitucional", explica.

"Se ele [o decreto] tira acesso de uma parte da população à saúde – sabe-se lá por que caminhos, porque não deixam claro – isso não pode ser feito. A Constituição não permite isso e não pode ser emendada por esse caminho. Qualquer desvio para esse rumo pode entrar numa cláusula pétrea. Constituição não pode ser emendada para tirar ou diminuir direitos e garantias", esclarece o pesquisador.

  • Elas são a porta de entrada preferencial no SUS, onde é feita a chamada atenção primária ou básica em saúde.

    Segundo o próprio Ministério da Saúde, o objetivo dos postos é “atender até 80% dos problemas de saúde da população, sem que haja a necessidade de encaminhamento para outros serviços, como emergências e hospitais”.

  • O que diz o governo?

    Martha Seillier, secretária especial do PPI, do Ministério da Economia, diz que falta "estrutura de UBS" em diversos municípios brasileiros.

    "Infelizmente, das obras contratadas no passado, muitas delas não foram finalizadas. Por isso, acreditamos que o modelo de PPP pode contribuir muito nesse sistema de UBS do Brasil, para que a gente possa, via parceria com empresas privadas, finalizar esses empreendimentos, construir novas UBS e equipá-las. E ter um serviço de excelência para a população" - Martha Seillier, secretaria de PPI do Ministério da Economia

    G1 procurou tanto o Ministério da Saúde como o da Economia para saber quantas e quais seriam e onde estariam localizadas as UBS não finalizadas, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

    Na terça-feira, o Ministério da Economia afirmou em nota "os estudos terão por finalidade a estruturação de projetos-pilotos". Segundo a pasta, a construção de "modelos de negócios" não vai tirar o Ministério da Saúde da "condução da política pública".

  • fonte  globo.com

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