MAL OCULTO: Maioria das mulheres acreanas desconhece que são vítimas de violência psicológica

JOELDA - F. Victor Augusto 440
 Muitas mulheres podem estar sento vítimas de uma violência tão ou mais permanente que a agressão física. Xingamentos, desvalorização da autoestima, palavras de desmotivação, entre outros métodos verbais são os principais alimentos da violência psicológica.

 Em entrevista exclusiva À GAZETA, uma mulher, que preferiu usar o nome fictício de ‘Ana Paula’ para proteger a identidade, revela que sofre esses abusos há 30 anos.

 A vítima se casou jovem. Assim como muitas mulheres, teve um ótimo relacionamento nos primeiros anos. Era feliz e viu ali a possibilidade de construir uma família. Os filhos vieram e junto a isso algumas coisas foram mudando.

 O marido de Ana Paula alegava amá-la, porém, costumava usar de ofensas para mantê-la submissa. Frases como ‘você está feia’, ‘ninguém além de mim vai te querer’, ‘você nunca conseguirá ser feliz com outro’, faziam parte do cotidiano dela.

 Ouvir assim nem parece tão grave, mas ter tais afirmações presentes no dia a dia durante décadas pode transformar a vida de uma pessoa em um pesadelo. Esse tipo de violência é tão oculto, que Ana Paula levou quase 30 anos para perceber que era uma vítima.

 A compreensão dela só veio há alguns anos, quando passou a participar de encontros promovidos pela Secretaria Estadual de Políticas Públicas para Mulheres (SEPMulheres). Ana começou a perceber que já tentara se separar diversas vezes do companheiro, mas sempre acabava voltando. “Ele me manipulava a acreditar que me amava, mas não agia assim. Tentei várias vezes me separar, seguir adiante, mas me tornei dependente dele”.

 Um agravante neste caso, e que assusta muito Ana Paula, é o fato de o marido ser usuário de drogas. Ela conta que demorou bastante até descobrir. “Os vizinhos tentavam me alertar, mas eu fingia não ouvir, e nem acreditar”.

 Todo o dinheiro que a mulher conquistava no trabalho acabava desaparecendo junto com alguns móveis da casa. Para sustentar o vício, o marido não se incomodava em agir assim. “Meu salário não rendia. Eu até ganhava bem, mas não tinha prosperidade. Além do mais, perdi a conta de quantas vezes tive medo de ele fazer alguma coisa a mim e aos meus filhos por chegar louco e drogado”.

 Em uma das últimas vezes que o homem chegou a casa sob efeito de entorpecentes, Ana Paula fugiu com os filhos, temendo pela integridade física de todos. O medo era que as palavras se transformassem em ações a um ponto que alguém perdesse a vida.

 Ela se mudou para outra casa, lutando para não voltar atrás, como das outras vezes. Ana Paula revela que pensamentos negativos sobre um futuro sem o parceiro lhe afligiam, realmente como um tipo de dependência.

 Mas o homem não respeitou a sua decisão e invadiu o local onde ela se abrigava com as crianças. “Ele estava drogado e levou um aparelho eletrônico”, detalha Ana.

 A vítima procurou a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), mas enfrentou dificuldades para realizar a denúncia. “Nem posso culpar o atendente, pois acredito que ele devia estar mal informado acerca da Lei Maria da Penha. Quando expliquei o que aconteceu, ele perguntou se eu havia sido agredida fisicamente, se estava machucada ou algo do tipo. Como neguei, ele disse que não poderia me ajudar. Ou seja, será preciso algo pior acontecer para que a justiça seja feita. Algumas colegas tentaram esperar por isso, mas pagaram com a própria vida”, desabafa.

 Atualmente, Ana Paula está em uma Casa Abrigo. Ela teme pela vida e, principalmente, pela sua recuperação. Durante o relacionamento conturbado, a sua saúde ficou prejudicada devido à depressão. Hoje, ela recebe atendimento psicológico para tentar se desprender da antiga vida, que só lhe causou mal. “Tenho consciência que tive um casamento doentio. Não era saudável. Sei que preciso de ajuda e de tratamento”.

 O futuro ainda é incerto, e mesmo tendo passado por tantas agressões psicológicas, Ana Paula revela que corre o risco de ter recaídas e voltar para o companheiro. Não porque ela o ame, mas porque a dependência de estar com ele é mais forte.
Reconhecer a agressão psicológica pode levar até décadas, afirmam especialistas
 Durante todos os cursos profissionalizantes realizados pela Casa Rosa Mulher, os tipos de violência são explicados para as participantes. A agressão física é a mais fácil de identificar, garante a psicóloga Lenira Pontes. “Quando chegamos à parte da violência psicológica, algumas delas ficam espantadas porque não identificavam aquilo como um abuso. Geralmente isso é visto de maneira comum em um casamento, mas está longe de ser normal. Esta distinção, elas só passam a fazer nos cursos. A reação é sempre impressionante. Muitas chegavam e relatavam que o homem dizia que as amavam, mas não as deixavam sair de casa ou falar com os vizinhos e familiares. Diziam que os maridos eram extremamente ciumentos e que, por conta disso, elas não podiam vestir determinadas roupas. Algumas chegavam a ser isoladas da sociedade, o que acabava gerando a depressão”.

 De acordo com a psicóloga, uma mulher pode levar até 15 anos para reconhecer que está sofrendo violência psicológica, mas isso não significa que esteja preparada para romper a relação. Às vezes ela quer pedir ajuda, mas não sabe exatamente o que busca: se é mudar o companheiro ou denunciar.

 Lenira mostra um diagnóstico que diz que a vítima de violência deve receber atendimento psicológico por pelo menos 1 ano. Ainda assim, a maioria das pacientes que a profissional atende continua com os seus parceiros. “Dizer que mulher gosta de apanhar é um mito, e até um preconceito. A gente tem vários motivos que justifiquem o porquê dela não romper em situações violentas, que vai desde dependência financeira até não querer separar os filhos dos pais. Em nível de psicologia, essas mulheres acabam vivendo um ciclo de repetição. Primeiro vem a lua de mel, seguida da tensão, depois a explosão (quando há a violência) e novamente a lua de mel. A mulher aceita o ciclo acreditando na mudança do marido. Há uma esperança alimentada”, explica.

 Além disso, outro fator aponta que mulheres que sofrem violência são filhas de mães que passaram pela mesma coisa, afirma a psicóloga. “O homem que também pratica a agressão geralmente veio de uma família onde isso era comum. A nossa proposta hoje em dia é trabalhar a mulher e o homem. Isso não é tarefa fácil, já que vivemos em uma sociedade machista e patriarcal”.
Atendentes da rede de proteção às mulheres são capacitados para atender as agredidas 
mulheres-agredidas
 Para que outras mulheres não passem pelo mesmo problema de ‘Ana Paula’ no momento de procurar atendimento, a Deam, que é considerada porta de entrada para quem deseja fazer denúncias, está em processo de capacitação dos funcionários.

 O principal objetivo é fazer com que os profissionais da área conheçam o conteúdo normativo do enfrentamento à violência como política nacional e também a Lei Maria da Penha, afirma a diretora de Direitos Humanos da SEPMulheres, Joelda Paes. “Queremos humanizar o atendimento. Para isso contamos com a parceria da Secretaria Estadual de Segurança Pública (Sesp), Secretaria de Polícia Civil, Conselho de Igualdade Racial, Universidade Federal do Acre (Ufac), Tribunal de Justiça e da Diretoria de Humanização. Foram 80h de formação. Começamos pela Polícia Militar, que é quem atende primeiro as mulheres. Eles devem estar preparados para realizar este processo e conhecer como funciona a rede de atendimento”.

 Estima-se que até o final do ano um protocolo de atendimento seja lançado, para guiar mulheres e profissionais aos devidos papeis de cada órgão da rede de atendimento e proteção às vítimas de violência doméstica.

 A agressão física ainda é a mais incidente, vindo sempre em um conjunto de outros tipos de violência. O estupro é, segundo Joelda, o maior gerador de sequelas. “É extremamente importante às pessoas saberem que, em caso de estupro, a vítima deva recorrer à profilaxia de emergência, que são as vacinas contras as Doenças Sexualmente Transmissíveis e a pílula do dia seguinte”, orienta.

 Em 2009, o Governo do Estado assinou um pacto com o Governo Federal para implantar ações de enfrentamento à violência contra mulher. Desde então, o número de homicídios sofreu uma queda e os dados mostram que as vítimas estão denunciando mais. “Sempre existiu a violência. Ela só está aparecendo mais porque a gente está conseguindo organizar esses serviços, capacitar os profissionais e informar que existe uma rede pronta para atender”.
18 até 29 anos são as idades das vítimas de violência no lar, segundo levantamento do Ministério Público do Estado do Acre. Entre os agressores, metade estava sóbria quando cometeu os atos  
Vítimas de violência doméstica estão cada vez mais encorajadas a denunciar agressores
 A Organização Mundial de Saúde (OMS) atesta que a maioria dos crimes praticados contra as mulheres no mundo é de autoria de seus (ex) companheiros. Em Rio Branco, entre os anos 2005 e 2011, os registros da Delegacia da Mulher confirmam tal informação.

 De acordo com o último estudo realizado pelo Ministério Público do Acre (MP/AC), que mostra como funciona a rede de proteção à mulher vítima de violência no Estado, 50% dos autores da agressão estavam sóbrios quando cometeram o crime.

 Quanto à idade, a predominância são vítimas entre 18 e 29 anos. Quando comparado com a faixa etária do autor, percebe-se que as mulheres apresentam idade bem inferior aos homens agressores.

 No Acre, até o dia 21 de setembro de 2006, o número de inquéritos era apenas 132. Depois disso, houve um aumento nestes dados, que, segundo a diretora de Direitos Humanos da SEPMulheres, Joelda Pais, está relacionado diretamente à publicação da Lei Maria da Penha, em agosto daquele ano.

 Após a promulgação da lei, houve uma redução no número de homicídios de mulheres a partir de 2009, tendência que se confirma até 2013.

 Já os inquéritos policiais instaurados na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulhersofreram um salto em 2006, e um incremento a cada ano. Em 2010 e 2011, houve ligeira queda no número de denúncias, mas logo seguido de novo crescimento em 2012, que levou à superação da marca mais alta até então alcançada em 2009.

 Ainda de acordo com o levantamento realizado pela SEPMulheres, em 2010, 123 mulheres vítimas de violência sexual haviam registrado o abuso na área da Saúde. Em 2012, este número mais que dobrou, chegando a 401.

 O estudo do MP/AC aponta, ainda, que a maioria sofreu violência física. Quando perguntadas se procuraram ajuda, 51% das mulheres entrevistadas afirmaram que sim; quanto ao tipo de ajuda, 41% delas foram à delegacia especializada e 49% ligaram para o serviço de atendimento policial de urgência, o 190.
Os tipos de violência
violencia mulher
* Violência psicológica, responsável por causar dano emocional e diminuição da autoestima, prejudicando ou perturbando o pleno desenvolvimento. Essa ação visa degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir.
* Violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda a sua integridade ou saúde corporal.
* Violência sexual, ocorrida quando o agressor mantém ou obriga a vítima a participar de relação sexual não desejada, sob intimidação, ameaça, coação ou uso da força.
* Violência patrimonial, caracterizada por qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.
* Violência moral, relacionada a qualquer ação de calúnia, difamação ou injúria.   

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